domingo, 25 de maio de 2014

Intolerância Ideológica


É impressionante como há muitas pessoas que se utilizam da propagação da "palavra de deus" para exercer sua intolerância ideológica.
Diariamente vemos inúmeras propagandas pró-religião tratadas como inócuas ou banais, mesmo que dirigidas a quem não compartilha das mesmas crenças.
As propagandas são feitas indiscriminadamente nas casas das pessoas, nas escolas, nos transportes coletivos, nas ruas e espaços públicos, de forma direta e incisiva ou de forma velada e repetitiva.
Os propagandistas religiosos costumam criticar a não-crença alheia sem achar que isto represente agressão ou falta de respeito. Ao mesmo tempo, sentem-se desrespeitados e feridos quando a existência de um deus é posta em xeque e as suas crenças religiosas são analisadas criticamente à luz da razão, da evolução das espécies e da dinâmica física do universo.
Toda essa disseminação pró-religião no Brasil é fruto do poder histórico do cristianismo, que é capaz de gerar um assustador paradoxo: apesar de o Estado brasileiro ser oficialmente laico, na prática funciona como um regime de totalitarismo ideológico cristão (nas cédulas do Real ou nos feriados oficiais, vemos uma impregnação da ideologia cristã, por exemplo).
Vejam dois casos ilustrativos da intolerância ideológica cristã que aconteceram comigo recentemente.
Certa vez estava na Livraria Cultura quando comprei um exemplar de "Deus, Um Delírio" de Richard Dawkins e fui embalá-lo para presente. Tão logo a atendente que me recepcionava viu título do livro, perguntou-me rispidamente "Não é heresia comprar um livro desses?”. "Talvez. Depende tão somente de sua crença.", respondi.
Um outro dia, a caminho da faculdade, parei num sinal de trânsito e um ambulante entregou-me um escapulário e um texto religioso e esperou uma contrapartida minha em dinheiro. Educadamente disse que não contribuiria e, quando questionado do porquê, disse que não acreditava em deus. Como resposta, tive o escapulário e o texto tomados de minha mão antes que pudesse devolvê-los normalmente e escutei um sonoro "Aff".
Provavelmente a maior parte das pessoas encarará esse texto como uma besteira, um absurdo ou mesmo uma falta do que fazer. Uma minoria, diferentemente, se identificará com o desabafo de alguém que periodicamente recebe alfinetadas por sua não-crença religiosa. Espero que este cenário se modifique.

quinta-feira, 22 de maio de 2014

Sexta-básica

Um dia desses vi uma matéria no jornal sobre a alta do preço da cesta-básica e fiquei a me perguntar quanto custa uma sexta-básica. Isto mesmo... Sexta-básica.
A sexta-básica é o momento em que o cidadão comum ganha seu passaporte para liberdade, se livrando da odisseia estressante da semana; é o divisor de águas entre a realidade do trabalho e a do lazer. E, como tudo na vida, tem um preço.
Agora, resta saber, quanto vale uma sexta-básica? Depende de quem é você. A sexta-básica, assim como a cesta-básica, varia de cidade para cidade, de estado para estado. Só que a primeira é um reflexo da cultura pessoal, sendo influenciada pelos hábitos e preferências de cada um.
Se você gosta de frequentar peças e teatros e sair para jantar em bons restaurantes, o preço da sua sexta-básica é um. Já se gosta de simplesmente comer aquele bom e velho pastel com caldo de cana ou tomar uma cervejinha com os amigos, o preço é outro.
Onde eu moro, pelo menos, o preço da sexta-básica é alarmante. Praticamente não dá mais para ir ao cinema com a namorada e lanchar depois sem ter que pedir ajuda a um contador – bom para eles que arrumam trabalho!
E não pára por aqui. Por mais alto que seja esse preço, ele tende sempre a aumentar. O problema é que nossa felicidade não acompanha os valores da inflação. O importante é o que fazemos, não o quanto pagamos por isso. Não é porque gastamos cinquenta reais numa saída que ela é melhor do que quando gastávamos vinte e cinco fazendo a mesma coisa ano passado.
E agora, José, qual a solução? Quem souber, deixe um recado, que a situação tá ruim e meu contador só faz se divertir às minhas custas. Vou empobrecer feliz, pois chegou sexta-feira, tchau!


Caio Menezes
21.04.2011

quarta-feira, 21 de maio de 2014

Crítica - Praia do Futuro




Praia do Futuro, novo filme de Karim Aïnouz, é um estudo de personagem que gira em torno da busca de autoconhecimento. A construção da narrativa é montada sobre o personagem Donato (Wagner Moura), um bombeiro militar que trabalha como socorrista na Praia do Futuro. É neste contexto geográfico da Praia do Futuro que conhecemos a dinâmica familiar entre Donato e Ayrton (Jesuíta Barbosa), seu irmão. Ayrton é apresentado como o irmão caçula que vê no mais velho um modelo a se inspirar e como um dos pilares da sustentação psicológica de Donato. O contexto social em que Donato está inserido é o que possibilita o protagonista a conhecer Konrad (Clemens Schick) – motociclista alemão com quem formará um par no seguir da projeção – em meio a um socorro de afogamento.
Vivido com extrema sensibilidade por Wagner Moura, Donato mostra-se um indivíduo cheio de incertezas sobre si próprio, parecendo não estar bem na pele que habita. Uma das características que compõem o personagem Donato é sua homossexualidade, que hora alguma na narrativa é tratada como o centro de seus questionamentos, corroborando com o fato de que a busca por uma identidade, tema universal, não precisa passar necessariamente por um questionamento sexual. Isto pode ser visto através da naturalidade com que o tema é abordado no filme e pela consistente interpretação de Wagner Moura.
Uma discreta mudança no comportamento sexual de Donato é indicativa de sua autorreflexão e de seu crescimento psicológico. No início da projeção, na primeira transa entre Donato e Konrad, aquele assume uma condição de passividade. No meio do segundo ato, em meio ao turbilhão psicológico de Donato e sua indecisão sobre voltar ou não para o Brasil, ele é ativo sexualmente. Isto funciona como uma metáfora de tomar as rédeas da própria vida, inclusive do relacionamento afetivo, que se mostra seu alicerce.
As cores do ambiente e do figurino de Donato variam entre tons de vermelho e azul, relacionados com os eventos que lhe causam felicidade e com os que causam reflexão ou o mantêm na inércia. O vermelho traz a conotação positiva e de paixão e está presente na roupa de socorrista (profissão com íntima relação com a praia e o mar, paixões do personagem principal), nas cores das boates (onde Donato extravasa alegria) e ainda no macacão de Konrad ao final da projeção. O azul é parte da roupa em momentos de questionamento existencial (inclusive no macacão de Donato ao final da projeção) e da fotografia dos momentos reflexivamente críticos entre Donato e Ayrton, como quando aquele apresenta a “praia sem mar” a este.
Aïnouz utiliza-se de uma direção sutil para construir a narrativa, mostrando aos espectadores mais atentos que, em um bom filme, nada é por acaso. Serve de ilustração a bela cena em que Ayrton desce de elevador no Aquário de Berlim para procurar Donato. É uma metáfora da tentativa do “menino que tem medo de água” submergir no mundo do “Aquaman”.
Utilizando-se de um formato de capítulos, Aïnouz apresenta o desenvolvimento das personagens através da variação de tempo e espaço, mas sofre um pouco com uma falta de continuidade, evidenciada pela ausência de explicação consistente do afastamento e ruptura familiar entre Donato e Ayrton na mudança daquele para Berlim, por exemplo.
O universo narrativo é dividido em duas localidades: Praia do Futuro, em Fortaleza-CE, e Berlim, na Alemanha. Discrepantes em relação à fotografia escolhida para compô-las, Fortaleza e Berlim servem, à primeira vista, como retrato do imaginário popular sobre a característica de seus habitantes. Fortaleza é retratada numa fotografia alegre, cheia de tons fortes, o que sugere a alegria do povo brasileiro – que, inclusive, é evidenciada numa fala de uma personagem alemã no meio da narrativa. Por outro lado, Berlim possui uma fotografia repleta de tons escuros, rimando conotativamente com a ideia de frieza do povo alemão. É com uma contraposição fotográfica que o diretor competentemente joga com o espectador, subvertendo a ideia de que é no cenário geográfico retratado mais vividamente que os personagens serão mais felizes.
Há no filme inúmeros planos em close, que expõem a tensão psicológica dos personagens, passando ao espectador a complexidade dos conflitos existenciais enfrentados por eles. Há de ressaltar, também, a precisa colocação de um plano muito aberto onde Donato e Konrad conversam, tomando uma proporção muito pequena comparada ao cenário. Isto representa a enorme quantidade de vieses existentes além da tensão entre os dois – fato que é evidenciado verbalmente por Donato ao se referir a outras coisas que tomam espaço em seu coração e em sua mente além de seu relacionamento amoroso.
Merece destaque a interessante cena final do filme, composta por um plano-sequência que mostra as três personagens principais em uma estrada enevoada andando de motocicleta. A pista é toda sinuosa, cheia de curvas e coberta por névoa, sugerindo que não sabemos o que está por vir em nossa vida, assim como os personagens. Ayrton, o "que sabe que tudo é perigoso" e enfrenta, numa moto e Donato, o "que finge que nada é perigoso", na garupa da motocicleta de Konrad. A garupa funciona como retrato do relacionamento afetivo entre os dois, alicerce de Donato.
A dinâmica amorosa entre Donato e Konrad é fundamental para evolução e resolução do conflito psicológico do protagonista, mas não é consistente como única explicação para tal. Neste caso, o filme peca em não abordar outras circunstâncias determinantes para a resolução do conflito de identidade de Donato, motor da narrativa. Com muito mais prós do que contras, Praia do Futuro é um filme reflexivo que cumpre muito bem com seu papel de entretenimento.