terça-feira, 29 de janeiro de 2019

O alfaiate

Corria a notícia de que o Sinhô Fonseca anunciava a vaga de alfaiate para uma das suas lojas. O velho Barreto, falecido por conta da febre no outro inverno, fora o último daquele povoado a conhecer o ofício, tendo passado mais de quarenta anos como empregado da confecção. Dos vários que tomaram conhecimento do anúncio, nenhum caiu nas graças e o cargo ficou em aberto meses a fio. Eis que apareceu um homem de expressão serena e voz mansa, a quem chamavam de Severino, dizendo ter sido aprendiz de alfaiate na capital antes de fugir da Grande Febre.
Logo de início, Sinhô Fonseca ficou desconfiado do forasteiro e lhe propôs uma série de desafios para averiguar se era verdade o seu passado de aprendiz. Contrariando as expectativas iniciais, Severino mostrou-se ágil e perspicaz, cumprindo as tarefas que lhes eram ordenadas. Meio a contragosto, ficou decidido que ele seria contratado até que um alfaiate experiente aparecesse. 
Diferente do que era esperado de quem vinha da capital, Severino era um homem simpático e sorridente, e tratava a clientela com uma distinta educação mesmo com a pouca instrução formal. Ele possuía destreza e talento natos, sendo capaz de tirar as medidas sem usar a fita, fazendo cortes tão precisos e ajustados que caíam como uma segunda pele em todos que lhe encomendavam roupas.
Um ano se passou e o prestígio de Severino na região crescia na exata medida em que o rico comerciante o invejava. Sinhô Fonseca jamais conseguiu aturar o destaque de outro, a ponto de boicotar qualquer um que se destacasse em seus domínios. Ainda que as vendas da confecção subissem a ponto de dobrar nos últimos meses, pedidos de aumento de Severino eram sempre rejeitados, ficando cada vez mais difícil sustentar a mulher e o filho com o pequeno salário. Ele desejava, como nunca antes, tomar as rédeas de seu próprio destino e abrir uma pequena confecção em seu sobrado, na esperança de prosperar.
A criação de homem simples trazia um impeditivo para que Severino pudesse abrir o seu negócio: a necessidade da permissão do seu patrão para tal.
- Sinhô Fonseca, será que o doutor me dava a bênção de abrir uma alfaiataria? – ensaiava Severino para a esposa, sem que a teoria nunca fosse posta em prática.
As esperanças de criar coragem de pedir o consentimento já estavam à míngua quando o Padre Antonio, de vontade própria, resolveu ajudar o alfaiate após ouvir uma confissão de seus desejos.
Na primeira semana que sucedeu as festas, o sacerdote serviu de porta-voz de Severino e intercedeu junto ao comerciante.
- É claro, Padre Antonio. Será uma honra dar minha bênção a um homem tão trabalhador. – balbuciou Sinhô Fonseca, sabendo que pegaria mal pra sua imagem contrariar um homem de Deus. – Não só isso, como convidarei sua família para almoçar em minha casa em comemoração.
Já próximo do evento marcado, Severino muito obcecado em levar um presente para o patrão, percebeu que a única coisa que poderia oferecer era um dos capões que criava no quintal de sua casa. Pediu à mulher que separasse a carne, e então seguiram para a cidade na companhia do filho.
A moradia dos Fonseca ficava logo atrás da praça, subindo a rua da igreja. Ela ocupava o quarteirão inteiro, com uma sebe alta separando a entrada do terreno da construção de pedra mais ao fundo. As paredes da casa eram de tijolo e massa, pintadas com a tinta mais alva de que se tinha notícia. A família de Severino, que nem na capital tinha visto tamanha imponência, vivia no antigo sobrado que ficava no início da estrada de terra. Seu lar era pobre, os tijolos do chão ainda eram de barro e a porta da casa tinha um buraco na parte de baixo que precisava ser tapado com pano para não entrar ratos.
Mal bateram à porta, uma criada os recebeu e indicou o corredor que levava à sala, onde os Fonseca os esperavam. O ambiente era amplo e decorado com quinquilharias do tempo do Império que valiam mais que a maioria das casas do povoado. Aquela fora a primeira vez que imergiam num mundo do qual só ouviram falar. Os anfitriões eram em número de quatro, o Sinhô Fonseca, a sua esposa e os dois filhos. Estes últimos tinham entre seis e oito anos, pouco mais velhos que o filho de Severino. Estavam todos sentados à mesa, trajados em elegantes cortes, ironicamente confeccionados pelo emergente alfaiate.
O rechonchudo Sinhô Fonseca, sem conseguir levantar-se da cadeira que mal lhe cabia, mostrou com o dedo os lugares a serem ocupados e disse com fingimento:
- Sejam bem vindos! Fiquem à vontade e desfrutem dessa singela refeição.
Neste momento, outras duas criadas apareceram na sala de jantar, uma servindo os pratos e a outra as bebidas. Talheres, copos e taças eram informação demais para aquela simplória família. Severino e seus pares mal sabiam se comportar naquela situação, desencadeando risos nos dois filhos do Sinhô Fonseca, prontamente contidos por sua esposa.
O almoço foi servido aos poucos para demonstrar a prosperidade dos Fonseca. Depois de itens para eles inomináveis, Severino e sua família encontraram o reflexo de sua simplicidade num guisado preparado com o capão que eles próprios levaram. Até então, tudo seguia conforme arquitetado pelo Sinhô Fonseca. A pobre família estava tão desconfortável a ponto de achar que prosperidade não foi feita para pessoas de origem humilde. Dona Francisca, mulher de Severino, rezava em silêncio para que a sua ignorância não fosse notada.
Tão logo acabou a refeição, Sinhô Fonseca se dirigiu ao escritório e Severino o acompanhou.
- Meu caro Severino, após o bom serviço que sempre me prestou, como um homem justo às vistas de Deus, o mínimo que posso fazer é dar minha bênção e uns bons conselhos. Você deve imaginar que para começar um negócio é preciso de dinheiro. Isto é, de uma quantia inicial para comprar os equipamentos e fazer as coisas andarem.
- O que seria da minha família sem a sua generosidade? Diga-me, doutor, o que eu preciso fazer?
- Só aceitar minha ajuda, Severino. Você me toma um empréstimo a juros baixos e só precisa dar a sua casa como garantia, uma mera formalidade.
Depois de tudo estar em papel passado, Severino abriu sua alfaiataria. Suas peças vendiam como água e começou a prosperar a ponto de atrair a clientela da região. Foi então que decidiu tomar mais um empréstimo a Sinhô Fonseca para expandir o negócio.
Enquanto o investimento de Severino aumentava, o preço de suas roupas subia para cobrir os custos. Nessa mesma época, Sinhô Fonseca reduziu o preço nas suas lojas e a clientela então dividida retornou à antiga praça.
As coisas ficavam cada vez mais difíceis. Sem dinheiro para quitar as dívidas, Severino teve a casa penhorada e foi à falência justo quando seu filho foi diagnosticado com tuberculose e ele já não tinha dinheiro nem para os remédios. Não restava outra saída a não ser recorrer novamente ao antigo patrão.
- Sinhô, já não tenho nem casa nem trabalho, meu filho está morrendo e eu nada posso fazer. Por favor, me ajude.
- Meu rapaz, já não posso oferecer uma vaga como alfaiate na minha loja, pois esta já foi ocupada, mas Dona Francisca pode servir a minha família como cozinheira. O que acha?
E em sendo a única saída, Dona Francisca foi então morar na residência dos Fonseca para sustentar a família. Cozinhava dia e noite, dormindo no trabalho e só retornando para casa aos domingos. Apesar de todo o esforço, a doença era vil e seu filho Bento faleceu naquele mês.
Diante do luto, Severino e Dona Francisca mal conversavam. O convívio dos dois restringia-se a poucas palavras sem vida, uma centelha do que já fora. Eram agora dois desconhecidos dividindo o mesmo espaço. Num dos raros diálogos que vieram a ter, Severino disse que precisavam agradecer ao Sinhô Fonseca por toda ajuda que lhes dera.
- Você não vê, Severino, que aquele homem sugou tudo que nós tínhamos? – retrucou Dona Francisca.
- Não seja mal agradecida, Chica. Ele sempre ajudou com emprego e dinheiro. Sem ele nunca teríamos sobrevivido.
- Ele sempre te invejou, Severino. Sabotou o seu sucesso, destruiu tudo que você conquistou na vida. Desde que eu fui morar naquela casa – soluçava Dona Francisca – nos tornamos dois estranhos, e você sabe por quê? Porque ele me tocou, Severino. Toda noite ele se deitava comigo e ameaçava te matar caso eu não dormisse com ele. Eu já não conseguia olhar na sua cara ao voltar pra casa.
- Por que eu, meu Deus? O que eu fiz pra merecer uma coisa dessa? Chega! Eu vou matar aquele desgraçado!
- Esqueça, já não importa, Severino. Não me sobra muito tempo de vida, pois a consumpção que atacou Bento também me aflige. Não há mais o que fazer. Só quero passar meus últimos momentos ao seu lado.
Pouco tempo depois, Dona Francisca faleceu e Severino foi embora. Já sem ninguém para lhe fazer sombra, Sinhô Fonseca continuou a enriquecer a ponto de investir na capital.
Foi numa das visitas às novas praças que Sinhô Fonseca desapareceu sem deixar rastros. Ofertaram a recompensa de dez cabeças de gado para quem o trouxesse de volta, mas a procura foi em vão, pois semanas se passaram e ninguém o encontrou. Já davam como certo o seu falecimento quando souberam de um homem com as suas medidas que agonizava no hospital sem um pedaço de pele sequer. Era um mistério para os médicos haver alguém capaz de subtrair todo o tecido epitelial e manter o outro ainda vivo. Para isso, o autor teria que ser um exímio artesão. No final das contas, nunca encontraram o culpado, mas os moradores do povoado sabiam de um antigo alfaiate que era capaz de mágica com seus cortes precisos.

Um comentário:

  1. Caro Caio,
    Lemos com horror seu conto. Não entendo como você foi cair nessa história? eu não conheço você e nem contei do que eu fiz a ninguem.
    Preciso de um casaco novo de pele exótica.
    Me aguarde quando me ver.

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