Praia do Futuro, novo filme de Karim Aïnouz, é um
estudo de personagem que gira em torno da busca de autoconhecimento. A
construção da narrativa é montada sobre o personagem Donato (Wagner Moura), um
bombeiro militar que trabalha como socorrista na Praia do Futuro. É neste
contexto geográfico da Praia do Futuro que conhecemos a dinâmica familiar entre
Donato e Ayrton (Jesuíta Barbosa), seu irmão. Ayrton é apresentado como o irmão
caçula que vê no mais velho um modelo a se inspirar e como um dos pilares da sustentação
psicológica de Donato. O contexto social em que Donato está inserido é o que
possibilita o protagonista a conhecer Konrad (Clemens Schick) – motociclista
alemão com quem formará um par no seguir da projeção – em meio a um socorro de
afogamento.
Vivido com extrema sensibilidade por Wagner
Moura, Donato mostra-se um indivíduo cheio de incertezas sobre si próprio,
parecendo não estar bem na pele que habita. Uma das características que compõem
o personagem Donato é sua homossexualidade, que hora alguma na narrativa é
tratada como o centro de seus questionamentos, corroborando com o fato de que a
busca por uma identidade, tema universal, não precisa passar necessariamente
por um questionamento sexual. Isto pode ser visto através da naturalidade com que
o tema é abordado no filme e pela consistente interpretação de Wagner Moura.
Uma discreta mudança no comportamento sexual de
Donato é indicativa de sua autorreflexão e de seu crescimento psicológico. No
início da projeção, na primeira transa entre Donato e Konrad, aquele assume uma
condição de passividade. No meio do segundo ato, em meio ao turbilhão
psicológico de Donato e sua indecisão sobre voltar ou não para o Brasil, ele é
ativo sexualmente. Isto funciona como uma metáfora de tomar as rédeas da própria
vida, inclusive do relacionamento afetivo, que se mostra seu alicerce.
As cores do ambiente e do figurino de Donato
variam entre tons de vermelho e azul, relacionados com os eventos que lhe
causam felicidade e com os que causam reflexão ou o mantêm na inércia. O
vermelho traz a conotação positiva e de paixão e está presente na roupa de
socorrista (profissão com íntima relação com a praia e o mar, paixões do
personagem principal), nas cores das boates (onde Donato extravasa alegria) e
ainda no macacão de Konrad ao final da projeção. O azul é parte da roupa em
momentos de questionamento existencial (inclusive no macacão de Donato ao final
da projeção) e da fotografia dos momentos reflexivamente críticos entre Donato
e Ayrton, como quando aquele apresenta a “praia sem mar” a este.
Aïnouz utiliza-se de uma direção sutil para
construir a narrativa, mostrando aos espectadores mais atentos que, em um bom
filme, nada é por acaso. Serve de ilustração a bela cena em que Ayrton desce de
elevador no Aquário de Berlim para procurar Donato. É uma metáfora da tentativa
do “menino que tem medo de água” submergir no mundo do “Aquaman”.
Utilizando-se de um formato de capítulos, Aïnouz
apresenta o desenvolvimento das personagens através da variação de tempo e
espaço, mas sofre um pouco com uma falta de continuidade, evidenciada pela
ausência de explicação consistente do afastamento e ruptura familiar entre
Donato e Ayrton na mudança daquele para Berlim, por exemplo.
O universo narrativo é dividido em duas
localidades: Praia do Futuro, em Fortaleza-CE, e Berlim, na Alemanha.
Discrepantes em relação à fotografia escolhida para compô-las, Fortaleza e
Berlim servem, à primeira vista, como retrato do imaginário popular sobre a
característica de seus habitantes. Fortaleza é retratada numa fotografia
alegre, cheia de tons fortes, o que sugere a alegria do povo brasileiro – que,
inclusive, é evidenciada numa fala de uma personagem alemã no meio da
narrativa. Por outro lado, Berlim possui uma fotografia repleta de tons
escuros, rimando conotativamente com a ideia de frieza do povo alemão. É com
uma contraposição fotográfica que o diretor competentemente joga com o
espectador, subvertendo a ideia de que é no cenário geográfico retratado mais
vividamente que os personagens serão mais felizes.
Há no filme inúmeros planos em close, que expõem
a tensão psicológica dos personagens, passando ao espectador a complexidade dos
conflitos existenciais enfrentados por eles. Há de ressaltar, também, a precisa
colocação de um plano muito aberto onde Donato e Konrad conversam, tomando uma
proporção muito pequena comparada ao cenário. Isto representa a enorme
quantidade de vieses existentes além da tensão entre os dois – fato que é
evidenciado verbalmente por Donato ao se referir a outras coisas que tomam espaço
em seu coração e em sua mente além de seu relacionamento amoroso.
Merece destaque a interessante cena final do
filme, composta por um plano-sequência que mostra as três personagens
principais em uma estrada enevoada andando de motocicleta. A pista é toda
sinuosa, cheia de curvas e coberta por névoa, sugerindo que não sabemos o que
está por vir em nossa vida, assim como os personagens. Ayrton, o "que sabe
que tudo é perigoso" e enfrenta, numa moto e Donato, o "que finge que
nada é perigoso", na garupa da motocicleta de Konrad. A garupa funciona
como retrato do relacionamento afetivo entre os dois, alicerce de Donato.
A dinâmica amorosa entre Donato e Konrad é
fundamental para evolução e resolução do conflito psicológico do protagonista,
mas não é consistente como única explicação para tal. Neste caso, o filme peca
em não abordar outras circunstâncias determinantes para a resolução do conflito
de identidade de Donato, motor da narrativa. Com muito mais prós do que
contras, Praia do Futuro é um filme reflexivo que cumpre muito bem com seu
papel de entretenimento.
Belo texto, expondo de forma clara o sentir do crítico em uma análise percuciente, sendo perfeita a máxima ali contida no sentido que "em um bom filme, nada é por acaso", inclusive nada sendo por acaso na análise feita. Parabéns!
ResponderExcluirPaulo Ianez
Curti!
ResponderExcluirA análise me deixou com mais vontade ainda de ver o filme. Legal o blog! Só colocaria mais umas cores por aqui. Só vejo tons de cinza, kkkkkk. ;)
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