sexta-feira, 14 de junho de 2019

Por quem as sanfonas tocam

Sempre achei o mês de junho o mais particular do ano para o nordestino. É o momento das tradicionais festas religiosas, da exaltação da cultura regional, das comidas típicas, da música que nos remete a Luiz Gonzaga e a Jackson do Pandeiro, e também das chuvas banharem a terra ávida por água.

Nessa época, a alta do turismo local é pautada pela proporção em que o forró toma conta das homenagens aos santos católicos - Antônio, Pedro e João.

Santo Antônio, o casamenteiro, é festejado em procissões nas quais uma multidão se arrasta nas ruas, fazendo e pagando promessas em troca de amarrar os seus pares. Sua celebração ser em 13 de junho configura uma eficiente estratégia de marketing da Igreja, com o evento logo após o Dia dos Namorados - uma espécie de venda casada, com o perdão do trocadilho.

São Pedro, conhecido por ser uma espécie de porteiro do céu, recebe os louros de ser também o padroeiro das chuvas. Enquanto o sertão clama por água, quem frequenta o arrastapé em meio à molhação põe a culpa no coitado por atrapalhar a festa, destinando-lhe amor e ódio.

Se Antônio e Pedro tem funções bem definidas no imaginário popular, me pergunto o que tem de especial esse tal de João para ser o favorito da opinião pública, com direito a festa suntuosa organizada por políticos que excedem o orçamento em shows superfaturados. Segundo fontes confiáveis - leia-se Wikipedia - ele foi um importante profeta, primo de Jesus e responsável pelo seu batismo. Esse é até um currículo razoável, mas que não justifica tanta idolatria. 

Após muito refletir, veio uma iluminação. Pode-se até ser feliz com a solteirisse e com o banho de chuva, mas nunca sem dançar forró. Sendo assim, resta concluir que, para justificar a boa fama, João só pode ser o sanfoneiro. Então nada mais justo que entoar o coro: Viva São João! Viva!

terça-feira, 29 de janeiro de 2019

O alfaiate

Corria a notícia de que o Sinhô Fonseca anunciava a vaga de alfaiate para uma das suas lojas. O velho Barreto, falecido por conta da febre no outro inverno, fora o último daquele povoado a conhecer o ofício, tendo passado mais de quarenta anos como empregado da confecção. Dos vários que tomaram conhecimento do anúncio, nenhum caiu nas graças e o cargo ficou em aberto meses a fio. Eis que apareceu um homem de expressão serena e voz mansa, a quem chamavam de Severino, dizendo ter sido aprendiz de alfaiate na capital antes de fugir da Grande Febre.
Logo de início, Sinhô Fonseca ficou desconfiado do forasteiro e lhe propôs uma série de desafios para averiguar se era verdade o seu passado de aprendiz. Contrariando as expectativas iniciais, Severino mostrou-se ágil e perspicaz, cumprindo as tarefas que lhes eram ordenadas. Meio a contragosto, ficou decidido que ele seria contratado até que um alfaiate experiente aparecesse. 
Diferente do que era esperado de quem vinha da capital, Severino era um homem simpático e sorridente, e tratava a clientela com uma distinta educação mesmo com a pouca instrução formal. Ele possuía destreza e talento natos, sendo capaz de tirar as medidas sem usar a fita, fazendo cortes tão precisos e ajustados que caíam como uma segunda pele em todos que lhe encomendavam roupas.
Um ano se passou e o prestígio de Severino na região crescia na exata medida em que o rico comerciante o invejava. Sinhô Fonseca jamais conseguiu aturar o destaque de outro, a ponto de boicotar qualquer um que se destacasse em seus domínios. Ainda que as vendas da confecção subissem a ponto de dobrar nos últimos meses, pedidos de aumento de Severino eram sempre rejeitados, ficando cada vez mais difícil sustentar a mulher e o filho com o pequeno salário. Ele desejava, como nunca antes, tomar as rédeas de seu próprio destino e abrir uma pequena confecção em seu sobrado, na esperança de prosperar.
A criação de homem simples trazia um impeditivo para que Severino pudesse abrir o seu negócio: a necessidade da permissão do seu patrão para tal.
- Sinhô Fonseca, será que o doutor me dava a bênção de abrir uma alfaiataria? – ensaiava Severino para a esposa, sem que a teoria nunca fosse posta em prática.
As esperanças de criar coragem de pedir o consentimento já estavam à míngua quando o Padre Antonio, de vontade própria, resolveu ajudar o alfaiate após ouvir uma confissão de seus desejos.
Na primeira semana que sucedeu as festas, o sacerdote serviu de porta-voz de Severino e intercedeu junto ao comerciante.
- É claro, Padre Antonio. Será uma honra dar minha bênção a um homem tão trabalhador. – balbuciou Sinhô Fonseca, sabendo que pegaria mal pra sua imagem contrariar um homem de Deus. – Não só isso, como convidarei sua família para almoçar em minha casa em comemoração.
Já próximo do evento marcado, Severino muito obcecado em levar um presente para o patrão, percebeu que a única coisa que poderia oferecer era um dos capões que criava no quintal de sua casa. Pediu à mulher que separasse a carne, e então seguiram para a cidade na companhia do filho.
A moradia dos Fonseca ficava logo atrás da praça, subindo a rua da igreja. Ela ocupava o quarteirão inteiro, com uma sebe alta separando a entrada do terreno da construção de pedra mais ao fundo. As paredes da casa eram de tijolo e massa, pintadas com a tinta mais alva de que se tinha notícia. A família de Severino, que nem na capital tinha visto tamanha imponência, vivia no antigo sobrado que ficava no início da estrada de terra. Seu lar era pobre, os tijolos do chão ainda eram de barro e a porta da casa tinha um buraco na parte de baixo que precisava ser tapado com pano para não entrar ratos.
Mal bateram à porta, uma criada os recebeu e indicou o corredor que levava à sala, onde os Fonseca os esperavam. O ambiente era amplo e decorado com quinquilharias do tempo do Império que valiam mais que a maioria das casas do povoado. Aquela fora a primeira vez que imergiam num mundo do qual só ouviram falar. Os anfitriões eram em número de quatro, o Sinhô Fonseca, a sua esposa e os dois filhos. Estes últimos tinham entre seis e oito anos, pouco mais velhos que o filho de Severino. Estavam todos sentados à mesa, trajados em elegantes cortes, ironicamente confeccionados pelo emergente alfaiate.
O rechonchudo Sinhô Fonseca, sem conseguir levantar-se da cadeira que mal lhe cabia, mostrou com o dedo os lugares a serem ocupados e disse com fingimento:
- Sejam bem vindos! Fiquem à vontade e desfrutem dessa singela refeição.
Neste momento, outras duas criadas apareceram na sala de jantar, uma servindo os pratos e a outra as bebidas. Talheres, copos e taças eram informação demais para aquela simplória família. Severino e seus pares mal sabiam se comportar naquela situação, desencadeando risos nos dois filhos do Sinhô Fonseca, prontamente contidos por sua esposa.
O almoço foi servido aos poucos para demonstrar a prosperidade dos Fonseca. Depois de itens para eles inomináveis, Severino e sua família encontraram o reflexo de sua simplicidade num guisado preparado com o capão que eles próprios levaram. Até então, tudo seguia conforme arquitetado pelo Sinhô Fonseca. A pobre família estava tão desconfortável a ponto de achar que prosperidade não foi feita para pessoas de origem humilde. Dona Francisca, mulher de Severino, rezava em silêncio para que a sua ignorância não fosse notada.
Tão logo acabou a refeição, Sinhô Fonseca se dirigiu ao escritório e Severino o acompanhou.
- Meu caro Severino, após o bom serviço que sempre me prestou, como um homem justo às vistas de Deus, o mínimo que posso fazer é dar minha bênção e uns bons conselhos. Você deve imaginar que para começar um negócio é preciso de dinheiro. Isto é, de uma quantia inicial para comprar os equipamentos e fazer as coisas andarem.
- O que seria da minha família sem a sua generosidade? Diga-me, doutor, o que eu preciso fazer?
- Só aceitar minha ajuda, Severino. Você me toma um empréstimo a juros baixos e só precisa dar a sua casa como garantia, uma mera formalidade.
Depois de tudo estar em papel passado, Severino abriu sua alfaiataria. Suas peças vendiam como água e começou a prosperar a ponto de atrair a clientela da região. Foi então que decidiu tomar mais um empréstimo a Sinhô Fonseca para expandir o negócio.
Enquanto o investimento de Severino aumentava, o preço de suas roupas subia para cobrir os custos. Nessa mesma época, Sinhô Fonseca reduziu o preço nas suas lojas e a clientela então dividida retornou à antiga praça.
As coisas ficavam cada vez mais difíceis. Sem dinheiro para quitar as dívidas, Severino teve a casa penhorada e foi à falência justo quando seu filho foi diagnosticado com tuberculose e ele já não tinha dinheiro nem para os remédios. Não restava outra saída a não ser recorrer novamente ao antigo patrão.
- Sinhô, já não tenho nem casa nem trabalho, meu filho está morrendo e eu nada posso fazer. Por favor, me ajude.
- Meu rapaz, já não posso oferecer uma vaga como alfaiate na minha loja, pois esta já foi ocupada, mas Dona Francisca pode servir a minha família como cozinheira. O que acha?
E em sendo a única saída, Dona Francisca foi então morar na residência dos Fonseca para sustentar a família. Cozinhava dia e noite, dormindo no trabalho e só retornando para casa aos domingos. Apesar de todo o esforço, a doença era vil e seu filho Bento faleceu naquele mês.
Diante do luto, Severino e Dona Francisca mal conversavam. O convívio dos dois restringia-se a poucas palavras sem vida, uma centelha do que já fora. Eram agora dois desconhecidos dividindo o mesmo espaço. Num dos raros diálogos que vieram a ter, Severino disse que precisavam agradecer ao Sinhô Fonseca por toda ajuda que lhes dera.
- Você não vê, Severino, que aquele homem sugou tudo que nós tínhamos? – retrucou Dona Francisca.
- Não seja mal agradecida, Chica. Ele sempre ajudou com emprego e dinheiro. Sem ele nunca teríamos sobrevivido.
- Ele sempre te invejou, Severino. Sabotou o seu sucesso, destruiu tudo que você conquistou na vida. Desde que eu fui morar naquela casa – soluçava Dona Francisca – nos tornamos dois estranhos, e você sabe por quê? Porque ele me tocou, Severino. Toda noite ele se deitava comigo e ameaçava te matar caso eu não dormisse com ele. Eu já não conseguia olhar na sua cara ao voltar pra casa.
- Por que eu, meu Deus? O que eu fiz pra merecer uma coisa dessa? Chega! Eu vou matar aquele desgraçado!
- Esqueça, já não importa, Severino. Não me sobra muito tempo de vida, pois a consumpção que atacou Bento também me aflige. Não há mais o que fazer. Só quero passar meus últimos momentos ao seu lado.
Pouco tempo depois, Dona Francisca faleceu e Severino foi embora. Já sem ninguém para lhe fazer sombra, Sinhô Fonseca continuou a enriquecer a ponto de investir na capital.
Foi numa das visitas às novas praças que Sinhô Fonseca desapareceu sem deixar rastros. Ofertaram a recompensa de dez cabeças de gado para quem o trouxesse de volta, mas a procura foi em vão, pois semanas se passaram e ninguém o encontrou. Já davam como certo o seu falecimento quando souberam de um homem com as suas medidas que agonizava no hospital sem um pedaço de pele sequer. Era um mistério para os médicos haver alguém capaz de subtrair todo o tecido epitelial e manter o outro ainda vivo. Para isso, o autor teria que ser um exímio artesão. No final das contas, nunca encontraram o culpado, mas os moradores do povoado sabiam de um antigo alfaiate que era capaz de mágica com seus cortes precisos.

sexta-feira, 13 de julho de 2018

Cotidiano

Era domingo, bem cedo, o sol ainda nem nascera. Ela continuava a bordar, horas a fio, tinha começado na noite anterior. A entrega estava quase pronta, não podia atrasar. As contas acumulavam em cima da mesa, numa pilha sempre maior que a dos pratos na pia, já que louça suja era proibida naquela casa. "Pobreza não é sujeira", eis a regra. Nessa hora, ele levantou. Preparou café e pão, já não arriscava mais que isso na cozinha, e vestiu-se para o trabalho. Dia de descanso era para quem podia, e como não era seu caso, deu um beijo nas meninas que ainda dormiam e saiu.
A roça era longe, tinha muito chão pela frente até lá. Às pedaladas de sua bicicleta, a imaginação fluia, escapando da realidade, sonhando com dias melhores. Era uma espécie desajeitada de Dom Quixote, que sem moinhos, sem gigantes, lutava contra a dureza da vida. Pensava-se um caubói a cavalo, como nos filmes, fumando cigarros Holywood e indo em busca de grandes recompensas, quando na realidade mal tinha dinheiro para os Arizona sem filtro, pedalando a velha bicicleta até a plantação.
Já havia uns dois anos que a colheita mal dava para alimentar as quatro bocas, quem dirá para vender na feira. Agora precisava fazer um extra, quem sabe no comércio, logo mais as meninas usariam uniformes novos. Tinha o maior orgulho delas, tão pequenas e já sabidas. Ele, com meia idade, mal pode frequentar a escola. Arranhava as quatro operações, um português fajuto e as capitais dos estados e países. A geografia era melhor que a história, falava de lugares onde nunca fora, o cinema ajudava.
Já passava muito do meio dia quando as meninas terminaram a limpeza da casa para ajudar a mãe e aguardavam o almoço ficar pronto. Com o frango na panela, ela mexia as mãos doloridas de tanto bordar. Comida pronta, barriga cheia, acabar as obrigações para não perder a hora da liturgia. A missa de domingo era o ponto alto da semana. O prefeito, os ricos da cidade, até os que não possuiam quase nada, todos tinham um lugar para pedir ou agradecer.
Ele acabara de voltar da roça. As roupas sujas e poídas, de arar a terra seca, prontamente colocadas na bacia de alumínio, cuja polidez refletia os sonhos nunca expostos daquela que cuidava da casa. Comia o resto da mistura, requentada, enquanto se vestia. Ela já estava pronta, ainda ficava bonita no vestido que marcava a fina cintura, com o brilho de outrora vivendo naquele corpo exaurido. 
Todos prontos, não podiam atrasar, não para a missa. As meninas vestidas em suas domingueiras, com direito a sapatinho e laço, andavam na frente, os dois logo atrás. Tinham pressa pra brincar na praça, mas com mãe religiosa era impossível escapar da igreja. E assim seguia a romaria para acabar da mesma forma, com gosto de pipoca quentinha, enquanto voltavam pra casa.
As meninas já na cama, adormeciam enquanto ele contava histórias. Era tarde, ela voltava a bordar, ele caia no sono. Daí a pouco levantaria, ainda sem ser dia claro, a colheita não espera, mas o dia seguinte seria melhor. Sonhava.

segunda-feira, 9 de julho de 2018

Por enquanto

Na história da humanidade, há pessoas que gravam para sempre as páginas do livro da vida. Suas ações e trajetórias ficam registradas e passam a fazer parte do imaginário popular, velando a lembrança que se tem delas. Por outro lado, a maioria de quem já passou por aqui não teve a oportunidade de constar nos autos.
Quando meu avô faleceu, me disseram que ele viveria para sempre na nossa memória. Claro que foi uma daquelas frases-chavão que usamos para confortar quem sofre, mas me fez refletir sobre outras coisas. Em mais de 100 anos de vida, ele vivenciou muita coisa e participou da história de muita gente. Nesse ínterim, as marcou com suas características, com seus valores e seus defeitos. 
Tive a oportunidade de conviver bastante com ele e usufruir do seu talento de contador de histórias. Pude perceber um pouco como era o mundo através de seus olhos e das suas recordações, e até construir sua figura histórica para a minha família, que nem sempre se confundia com sua figura pessoal que eu conhecia. 
Um dos eventos mais relevantes para o desenvolver de minha família é a saída do interior para vender farinha no mercado em Aracaju. Meu avô me contou como meu tio mais velho, seu braço direito, acabou levando-o a esta decisão que foi crucial para todos chegarem onde estão. Esta ação que se tornou memória é prova cabal do impacto de uma pequena coisa na vida dos outros, podendo virar estória ou até história.
Se por um lado sua imagem se manterá vívida na minha lembrança e na de quem conviveu com ele, é pequena a chance de as futuras gerações saberem quem ele foi e qual o seu significado para seus contemporâneos. 
Aliás, quantos de nós sabemos algo relevante sobre nossos antepassados, como eles eram, do que gostavam e o que conquistaram sendo pessoas comuns? Esse conhecimento prosaico foi se perdendo ao longo do tempo e hoje é ínfimo.
No final das contas, feliz daquele que pode ser lembrado positivamente pelo que viveu e realizou, mesmo com prazo de validade. Até porque, como diz a canção, o pra sempre, sempre acaba.

sábado, 24 de outubro de 2015

Posso ajudar?

Há coisas que me tiram do sério e, definitivamente, comprar presentes em datas comemorativas é uma delas. Nessas ocasiões, as lojas estão sempre cheias, com um turbilhão de gente entrando e saindo, e os vendedores quase todos ansiosos por comissões de vendas.
Ao pisar o pé numa loja, logo se escuta um sonoro "posso ajudar?" de um vendedor que aparentemente brotou do chão ou que estava à espreita até o potencial comprador aparecer. É a sinalização de que foi dado início à caçada. A partir daí, o vendedor encarna em sua presa e tenta exaustivamente que ela leve algum item.
Observando esses vendedores afoitos, desenvolvi uma teoria na qual existem dois tipos deles. O primeiro, o que te segue a loja inteira, fazendo as vezes da sua sombra; o segundo, o que elogia qualquer produto que você pega e diz que o destinatário daquele presente irá adorá-lo -ainda que não o conheça nem saiba nada sobre ele. Infelizmente, na maioria das vezes que vou às compras, termino encontrando com um desses tipos.
Quando me deparo com essa desagradável abordagem, quase nunca consigo concluir a compra. Ou tenho a sorte de já saber exatamente o que quero e ir diretamente à prateleira, fugindo do vendedor, ou fico impaciente, agradeço ironicamente a ajuda e vou embora.
De uns tempos para cá, tenho pensado em uma alternativa  a esse conflito. Acho que começarei a comprar tudo pela internet. Melhor, além de fazer as compras online, posso criar minha própria marca de camisas. Já tenho duas estampas em mente: "Não, obrigado" e "Estou só olhando". Será que elas fariam sucesso nesse de fim de ano?

sábado, 25 de abril de 2015

O choro

Entrou às pressas na livraria sem olhar para ninguém. Procurou a mesa mais afastada e pediu somente um café, como de costume. Estava atrasado para entregar a tradução que prometeu ao editor, o que o deixou bastante impaciente.
Há quatro anos, desde a morte precoce de sua esposa, o seu convívio social se restringiu basicamente ao dono da livraria onde passava suas tardes e ao seu contato na editora. Solitário e inconsolável foi como ficou após perder a mulher que amava. Essa mudança em sua vida foi capaz de transformar um bom escritor que já emplacara um ou dois sucessos em um medíocre tradutor de best-sellers. “Me prostituo intelectualmente por míseros trocados”, queixava-se, deprimidamente, enquanto revisava a tradução.
Já não via grande propósito no cotidiano, considerando-o uma sequência de acontecimentos sem muita importância. Nada mais era assunto para um texto, ninguém mais lhe inspirava a contar nenhuma história. A motivação para escrever reduziu na medida em que se isolou afetivamente do mundo que o rodeava. Descobriu a duras penas que viver sem paixão é sobreviver.
Embora seu dia tenha começado como o habitual, apático e sem brilho, algo subitamente despertou-lhe a atenção. Do outro lado da livraria, ouviu o choro de uma jovem que observava os livros de uma estante. O caráter incomum daquele episódio foi responsável por conquistar seu interesse. Quem era aquela jovem e o que a motivara a chorar? Essas perguntas automaticamente martelaram na sua cabeça. Aproximou-se e fitou-a com atenção. Ela aparentava mais ou menos a idade de sua esposa ao falecer e trazia no olhar uma transbordante melancolia. Ao perceber seu observador, ela derrubou o livro no chão e foi embora, assustada. Quando o apanhou, ele viu que aquele era um exemplar do seu primeiro romance publicado.
Esse inusitado acontecimento foi seguido de um punhado de dúvidas sobre a misteriosa jovem e de como seu livro foi capaz de tocá-la. Isto lhe despertou novamente a vontade de escrever. Pensou que se sua literatura foi responsável por sensibilizar alguém, ela ainda poderia fazê-lo dar sentido à vida.
Passou a noite em claro. Esta e as seguintes, escrevendo um esboço de um livro. Ligou pro seu editor, avisou que voltara a escrever e que já tinha uma prévia do texto. Ao ter seu material lido, não foi poupado das críticas que lhe cabiam. Disseram-lhe que seu novo trabalho não trazia o necessário para fisgar o leitor, que seria uma publicação fadada ao fracasso. Novamente deprimido, teve que se manter como tradutor para sobreviver.
Continuou a passar suas tardes na livraria, isolado do mundo, entre tristezas e traduções. Então, num dia tão igual aos outros, novamente avistou a jovem olhando as estantes. Decidiu agradecê-la por reavivar, ainda que por pouco tempo, seu desejo de escrever. Respirou fundo, levantou desajeitadamente da cadeira e seguiu em sua direção. Ria, nervoso, sem saber exatamente o que e como dizer. Foi quando, finalmente, percebeu que o que faltava em seu novo texto era justamente aquilo de que também carecia sua vida: bons diálogos.

sábado, 4 de abril de 2015

Já morreu, também.

Meu avô José sempre foi um grande contador de histórias. Aquele tipo empolgante de velhinho que viveu coisas demais e lembrava delas nos mínimos detalhes. 
Desde pequeno, costumava visitá-lo toda semana. A cada encontro, minha expectativa de ouvir seus relatos era prontamente satisfeita com a vontade e a disposição dele de contá-los. 
O gosto por coisas antigas era algo que partilhávamos. Algumas de suas histórias eram acompanhadas por registros igualmente velhos que atestavam sua veracidade: moedas, papéis, broches e outras tranqueiras que ele guardava em caixas no armário. Eu achava isso o máximo.
Imergir naquele mundo de conversas com ele era como ler um livro prosaico e informal, com um ágil narrador-personagem que estimulava a imaginação de seu espectador.
Saber que aquilo que ele me dizia realmente aconteceu era algo que me impressionava, já que muitos dos personagens eu nunca tinha visto pessoalmente, mas conhecia alguns de seus parentes mais novos.
Já no final de sua vida, com 102 anos, continuava a me contar sobre sua juventude, sobre como aprendeu a ler num sítio de interior, e sobre como foi seu casamento com minha avó -algumas de suas histórias mais vívidas. A cada narrativa, passada num tempo longínquo do qual só ele era sobrevivente, meu avô se referia a várias pessoas que eu nunca vi e murmurava "já morreu, também" ao citar seus nomes.
Hoje sou eu quem conta as histórias de meu avô. Lembrar delas me ajuda a reviver as agradáveis sensações que dividíamos. Agora sou eu que, vez ou outra, me pego murmurando "já morreu, também" quando falo dele.