sexta-feira, 13 de julho de 2018

Cotidiano

Era domingo, bem cedo, o sol ainda nem nascera. Ela continuava a bordar, horas a fio, tinha começado na noite anterior. A entrega estava quase pronta, não podia atrasar. As contas acumulavam em cima da mesa, numa pilha sempre maior que a dos pratos na pia, já que louça suja era proibida naquela casa. "Pobreza não é sujeira", eis a regra. Nessa hora, ele levantou. Preparou café e pão, já não arriscava mais que isso na cozinha, e vestiu-se para o trabalho. Dia de descanso era para quem podia, e como não era seu caso, deu um beijo nas meninas que ainda dormiam e saiu.
A roça era longe, tinha muito chão pela frente até lá. Às pedaladas de sua bicicleta, a imaginação fluia, escapando da realidade, sonhando com dias melhores. Era uma espécie desajeitada de Dom Quixote, que sem moinhos, sem gigantes, lutava contra a dureza da vida. Pensava-se um caubói a cavalo, como nos filmes, fumando cigarros Holywood e indo em busca de grandes recompensas, quando na realidade mal tinha dinheiro para os Arizona sem filtro, pedalando a velha bicicleta até a plantação.
Já havia uns dois anos que a colheita mal dava para alimentar as quatro bocas, quem dirá para vender na feira. Agora precisava fazer um extra, quem sabe no comércio, logo mais as meninas usariam uniformes novos. Tinha o maior orgulho delas, tão pequenas e já sabidas. Ele, com meia idade, mal pode frequentar a escola. Arranhava as quatro operações, um português fajuto e as capitais dos estados e países. A geografia era melhor que a história, falava de lugares onde nunca fora, o cinema ajudava.
Já passava muito do meio dia quando as meninas terminaram a limpeza da casa para ajudar a mãe e aguardavam o almoço ficar pronto. Com o frango na panela, ela mexia as mãos doloridas de tanto bordar. Comida pronta, barriga cheia, acabar as obrigações para não perder a hora da liturgia. A missa de domingo era o ponto alto da semana. O prefeito, os ricos da cidade, até os que não possuiam quase nada, todos tinham um lugar para pedir ou agradecer.
Ele acabara de voltar da roça. As roupas sujas e poídas, de arar a terra seca, prontamente colocadas na bacia de alumínio, cuja polidez refletia os sonhos nunca expostos daquela que cuidava da casa. Comia o resto da mistura, requentada, enquanto se vestia. Ela já estava pronta, ainda ficava bonita no vestido que marcava a fina cintura, com o brilho de outrora vivendo naquele corpo exaurido. 
Todos prontos, não podiam atrasar, não para a missa. As meninas vestidas em suas domingueiras, com direito a sapatinho e laço, andavam na frente, os dois logo atrás. Tinham pressa pra brincar na praça, mas com mãe religiosa era impossível escapar da igreja. E assim seguia a romaria para acabar da mesma forma, com gosto de pipoca quentinha, enquanto voltavam pra casa.
As meninas já na cama, adormeciam enquanto ele contava histórias. Era tarde, ela voltava a bordar, ele caia no sono. Daí a pouco levantaria, ainda sem ser dia claro, a colheita não espera, mas o dia seguinte seria melhor. Sonhava.

segunda-feira, 9 de julho de 2018

Por enquanto

Na história da humanidade, há pessoas que gravam para sempre as páginas do livro da vida. Suas ações e trajetórias ficam registradas e passam a fazer parte do imaginário popular, velando a lembrança que se tem delas. Por outro lado, a maioria de quem já passou por aqui não teve a oportunidade de constar nos autos.
Quando meu avô faleceu, me disseram que ele viveria para sempre na nossa memória. Claro que foi uma daquelas frases-chavão que usamos para confortar quem sofre, mas me fez refletir sobre outras coisas. Em mais de 100 anos de vida, ele vivenciou muita coisa e participou da história de muita gente. Nesse ínterim, as marcou com suas características, com seus valores e seus defeitos. 
Tive a oportunidade de conviver bastante com ele e usufruir do seu talento de contador de histórias. Pude perceber um pouco como era o mundo através de seus olhos e das suas recordações, e até construir sua figura histórica para a minha família, que nem sempre se confundia com sua figura pessoal que eu conhecia. 
Um dos eventos mais relevantes para o desenvolver de minha família é a saída do interior para vender farinha no mercado em Aracaju. Meu avô me contou como meu tio mais velho, seu braço direito, acabou levando-o a esta decisão que foi crucial para todos chegarem onde estão. Esta ação que se tornou memória é prova cabal do impacto de uma pequena coisa na vida dos outros, podendo virar estória ou até história.
Se por um lado sua imagem se manterá vívida na minha lembrança e na de quem conviveu com ele, é pequena a chance de as futuras gerações saberem quem ele foi e qual o seu significado para seus contemporâneos. 
Aliás, quantos de nós sabemos algo relevante sobre nossos antepassados, como eles eram, do que gostavam e o que conquistaram sendo pessoas comuns? Esse conhecimento prosaico foi se perdendo ao longo do tempo e hoje é ínfimo.
No final das contas, feliz daquele que pode ser lembrado positivamente pelo que viveu e realizou, mesmo com prazo de validade. Até porque, como diz a canção, o pra sempre, sempre acaba.

sábado, 24 de outubro de 2015

Posso ajudar?

Há coisas que me tiram do sério e, definitivamente, comprar presentes em datas comemorativas é uma delas. Nessas ocasiões, as lojas estão sempre cheias, com um turbilhão de gente entrando e saindo, e os vendedores quase todos ansiosos por comissões de vendas.
Ao pisar o pé numa loja, logo se escuta um sonoro "posso ajudar?" de um vendedor que aparentemente brotou do chão ou que estava à espreita até o potencial comprador aparecer. É a sinalização de que foi dado início à caçada. A partir daí, o vendedor encarna em sua presa e tenta exaustivamente que ela leve algum item.
Observando esses vendedores afoitos, desenvolvi uma teoria na qual existem dois tipos deles. O primeiro, o que te segue a loja inteira, fazendo as vezes da sua sombra; o segundo, o que elogia qualquer produto que você pega e diz que o destinatário daquele presente irá adorá-lo -ainda que não o conheça nem saiba nada sobre ele. Infelizmente, na maioria das vezes que vou às compras, termino encontrando com um desses tipos.
Quando me deparo com essa desagradável abordagem, quase nunca consigo concluir a compra. Ou tenho a sorte de já saber exatamente o que quero e ir diretamente à prateleira, fugindo do vendedor, ou fico impaciente, agradeço ironicamente a ajuda e vou embora.
De uns tempos para cá, tenho pensado em uma alternativa  a esse conflito. Acho que começarei a comprar tudo pela internet. Melhor, além de fazer as compras online, posso criar minha própria marca de camisas. Já tenho duas estampas em mente: "Não, obrigado" e "Estou só olhando". Será que elas fariam sucesso nesse de fim de ano?

sábado, 25 de abril de 2015

O choro

Entrou às pressas na livraria sem olhar para ninguém. Procurou a mesa mais afastada e pediu somente um café, como de costume. Estava atrasado para entregar a tradução que prometeu ao editor, o que o deixou bastante impaciente.
Há quatro anos, desde a morte precoce de sua esposa, o seu convívio social se restringiu basicamente ao dono da livraria onde passava suas tardes e ao seu contato na editora. Solitário e inconsolável foi como ficou após perder a mulher que amava. Essa mudança em sua vida foi capaz de transformar um bom escritor que já emplacara um ou dois sucessos em um medíocre tradutor de best-sellers. “Me prostituo intelectualmente por míseros trocados”, queixava-se, deprimidamente, enquanto revisava a tradução.
Já não via grande propósito no cotidiano, considerando-o uma sequência de acontecimentos sem muita importância. Nada mais era assunto para um texto, ninguém mais lhe inspirava a contar nenhuma história. A motivação para escrever reduziu na medida em que se isolou afetivamente do mundo que o rodeava. Descobriu a duras penas que viver sem paixão é sobreviver.
Embora seu dia tenha começado como o habitual, apático e sem brilho, algo subitamente despertou-lhe a atenção. Do outro lado da livraria, ouviu o choro de uma jovem que observava os livros de uma estante. O caráter incomum daquele episódio foi responsável por conquistar seu interesse. Quem era aquela jovem e o que a motivara a chorar? Essas perguntas automaticamente martelaram na sua cabeça. Aproximou-se e fitou-a com atenção. Ela aparentava mais ou menos a idade de sua esposa ao falecer e trazia no olhar uma transbordante melancolia. Ao perceber seu observador, ela derrubou o livro no chão e foi embora, assustada. Quando o apanhou, ele viu que aquele era um exemplar do seu primeiro romance publicado.
Esse inusitado acontecimento foi seguido de um punhado de dúvidas sobre a misteriosa jovem e de como seu livro foi capaz de tocá-la. Isto lhe despertou novamente a vontade de escrever. Pensou que se sua literatura foi responsável por sensibilizar alguém, ela ainda poderia fazê-lo dar sentido à vida.
Passou a noite em claro. Esta e as seguintes, escrevendo um esboço de um livro. Ligou pro seu editor, avisou que voltara a escrever e que já tinha uma prévia do texto. Ao ter seu material lido, não foi poupado das críticas que lhe cabiam. Disseram-lhe que seu novo trabalho não trazia o necessário para fisgar o leitor, que seria uma publicação fadada ao fracasso. Novamente deprimido, teve que se manter como tradutor para sobreviver.
Continuou a passar suas tardes na livraria, isolado do mundo, entre tristezas e traduções. Então, num dia tão igual aos outros, novamente avistou a jovem olhando as estantes. Decidiu agradecê-la por reavivar, ainda que por pouco tempo, seu desejo de escrever. Respirou fundo, levantou desajeitadamente da cadeira e seguiu em sua direção. Ria, nervoso, sem saber exatamente o que e como dizer. Foi quando, finalmente, percebeu que o que faltava em seu novo texto era justamente aquilo de que também carecia sua vida: bons diálogos.

sábado, 4 de abril de 2015

Já morreu, também.

Meu avô José sempre foi um grande contador de histórias. Aquele tipo empolgante de velhinho que viveu coisas demais e lembrava delas nos mínimos detalhes. 
Desde pequeno, costumava visitá-lo toda semana. A cada encontro, minha expectativa de ouvir seus relatos era prontamente satisfeita com a vontade e a disposição dele de contá-los. 
O gosto por coisas antigas era algo que partilhávamos. Algumas de suas histórias eram acompanhadas por registros igualmente velhos que atestavam sua veracidade: moedas, papéis, broches e outras tranqueiras que ele guardava em caixas no armário. Eu achava isso o máximo.
Imergir naquele mundo de conversas com ele era como ler um livro prosaico e informal, com um ágil narrador-personagem que estimulava a imaginação de seu espectador.
Saber que aquilo que ele me dizia realmente aconteceu era algo que me impressionava, já que muitos dos personagens eu nunca tinha visto pessoalmente, mas conhecia alguns de seus parentes mais novos.
Já no final de sua vida, com 102 anos, continuava a me contar sobre sua juventude, sobre como aprendeu a ler num sítio de interior, e sobre como foi seu casamento com minha avó -algumas de suas histórias mais vívidas. A cada narrativa, passada num tempo longínquo do qual só ele era sobrevivente, meu avô se referia a várias pessoas que eu nunca vi e murmurava "já morreu, também" ao citar seus nomes.
Hoje sou eu quem conta as histórias de meu avô. Lembrar delas me ajuda a reviver as agradáveis sensações que dividíamos. Agora sou eu que, vez ou outra, me pego murmurando "já morreu, também" quando falo dele.

terça-feira, 23 de dezembro de 2014

Piloto-automático

Hoje em dia, todos estão sempre muito ocupados. Vivem correndo contra o tempo, como se estivessem em débito com algo extremamente importante a ser feito e concentrados no depois. O ritmo acelerado da vida contemporânea deixa as pessoas numa rotação tão alta, que pouco se dão conta que não conhecem umas às outras.
Percebo isso ao analisar a superficialidade das relações humanas. Quando não restritas às redes sociais, as conversas basicamente se resumem à banalidade cotidiana -com pérolas de como o dia está quente, como o trânsito está irritante, como foi absurdo não anularem aquele gol impedido no jogo da última quarta-feira, por exemplo- ou ao chato e repetitivo papo de trabalho. É como se todos estivessem ligados em piloto-automático, não se aprofundando em nada do que se conversa, já que se tem outras prioridades.
Reflitamos. Você chega no seu ambiente de trabalho -ou de estudo- e se depara com as mesmas caras dia após dia. Quantas dessas pessoas você conhece a fundo? Quais os gostos de cada uma? Quais as suas visões de mundo e as suas pretensões de vida? Provavelmente, as respostas serão poucas, proporcionais às conversas que se teve.
Paradoxalmente, numa sociedade tão interconectada pelas redes sociais, as pessoas estão cada vez mais distantes, ainda que o feed do Facebook diga o contrário. Se a tecnologia e a globalização encurtaram as distâncias do mundo e aproximaram a coletividade, a correria automatizada do cotidiano afastou os indivíduos. Nesse ínterim, o ato de compartilhar deixou de ser algo real, isolando-se como instrumento de viralização na internet.
Seria interessante uma discussão sobre isso, um papo de bar, um cafezinho, ou algo do tipo. Se alguém topar, pode me mandar uma mensagem pelo Whatsapp. Quando puder, lerei. Pena que agora não posso conversar, estou atrasado e tenho que organizar as coisas da semana que vem. Fui!

terça-feira, 16 de dezembro de 2014

Meus pêsames

A capacidade de o ser humano trabalhar a linguagem verbal é algo formidável, que o difere dos outros animais. Racionais que somos, tentamos traduzir em palavras o que sentimos, o que pensamos -faço isto neste momento- para que possa ser captado pelos demais. 
Com o passar dos anos, a expressão linguística humana foi aprimorada, como podem evidenciar os vários idiomas difundidos no mundo. A língua portuguesa, por exemplo, é extremamente rica em verbetes e expressões, sendo deveras complexa. Curioso como algo tão sofisticado como a língua encontra algumas barreiras. Me atenho aqui à barreira da empatia, que me chama a atenção.
O paradoxo da empatia é difícil de ser resolvido. De um lado, é fácil demonstrarmos empatia num contexto positivo, onde o sentimento que se emana é a felicidade. Vibrar com a vitória do outro é algo contagiante, tranquilamente retratado por expressões alegres e com alto teor de veracidade. Por outro lado, há coisa mais complicada que demonstrarmos empatia com a perda alheia? Será que há algo mais piegas que simplesmente dizer "meus pêsames" ao vermos o sofrimento de um terceiro? Por mais que alguns troquem a expressão pelo equivalente "meus sentimentos" -não sei qual a pior- a frase parece que não carrega emoção. É evidente a dificuldade de se fazer verossímil a tradução verbal de um sofrimento compartilhado.
Procuro a causa desta barreira na incapacidade humana de lidar com as perdas e, principalmente, com a morte. Vejo como retrato de uma herança da sociedade ocidental, que tem dificuldade em encarar abertamente a morte e a interpretá-la como algo natural. Exemplo disso é o fato de quase não vermos pais discutindo com suas crianças o que significa morrer. A dificuldade que estes pais encontram é símbolo de seu próprio desconhecimento sobre o tema. Assim como com quase tudo que é desconhecido, teme-se a morte. 
Se a perda maior não é algo bem digerido pelas pessoas, a sensação desconfortável é repassada para os demais insucessos. Não sei ao certo se algum dia será possível resolver o paradoxo da empatia e tornar verossímeis as expressões solidárias à perda alheia. Creio que o melhor a fazer é substituir, neste caso, a linguagem. Em vez de falar, talvez seja melhor olhar e tocar, já que a expressão mais primitiva, às vezes, é quem melhor traduz o que sentimos.
Caso alguém partilhe deste meu devaneio e fique feliz com a identificação, pode usar toda a complexidade da língua para traduzir este sentimento. Caso fique triste com a dificuldade de enfrentar o paradoxo e queira mostrar-se empático, favor não me desejar "meus pêsames".